Hepatite Auto-imune: sintomas, diagnóstico e tratamento

FÍGADO, DOENÇAS E TRATAMENTOS

Manifestações Clínicas da Hepatite Auto-imune

A apresentação varia desde hepatite severa aguda com insuficiência hepática fulminante (25 a 35%) a elevação assintomática dos testes hepáticos (35%).2,4

Queixas inespecíficas crônicas ocorrem nos outros 35% dos pacientes, como: dor no quadrante superior direito do abdome, fadiga, perda de peso, amenorreia e poliartralgia.2 De todos os pacientes, até 50% já se apresentam com cirrose ao diagnóstico, o que demonstra que essa é uma doença silenciosa.2

Outras doenças associadas são: tireoidite auto-imune, artrite reumatóide, síndrome de Sjögren, vitiligo, glomerulonefrites e doença inflamatória intestinal (DII).1,4

Diagnóstico da Hepatite Auto-imune

O diagnóstico é feito pela associação de achados clínicos, bioquímicos, imunológicos, de imagem e histológicos.2 O Escore do Grupo Internacional de HAI revisado (IAIHG) e os Critérios Simplificados de HAI podem ser usados para diagnóstico.1,2 A performance do escore simplificado é muito boa, com sensibilidade de 95% e especificidade de 90%.2

Dentre os critérios bioquímicos e imunológicos destaca-se:1,2

  • Elevação das transaminases (AST e ALT) e dos níveis de gamaglobulina (IgG);
    • A elevação da IgG é vista em 80 a 85% dos casos, mesmo na ausência de cirrose e usualmente com níveis normais de IgA e IgM.2
    • Se houver elevação concomitante de IgA e IgM considere sobreposição com CBP (colangite biliar primária) ou doença hepática alcóolica.2
  • Reatividade ao FAN, anticorpo anti-músculo liso, anti-LKM1, anti-LC1 (anti-citosol hepático 1) e/ou anticorpo anti-antígeno hepático solúvel (anti-SLA);1,2
    • Anti-músculo liso, FAN, anti-LKM1 e anti-LC1 (anti-citosol hepático 1) devem ser dosados por imunofluorescência e o anti-SLA deve ser acessado por ELISA ou Imunoblotting.1
  • FAN e MM-liso estão presentes em 40 a 60% dos pacientes e não são específicos de HAI.2
  • Anti-LKM1 e anti-LC1 (anti-citosol hepático 1) estão presentes em 50 a 65% dos pacientes e não são específicos de HAI.2
  • Anti-SLA ou anti-SLA/LP é o único anticorpo doença específico (elevada especificidade) e é detectado em 20 a 50% dos pacientes e geralmente coexiste com outros anticorpos, como anti-Ro52.2,3,4 Anti-SLA se relaciona a uma HAI mais severa de pobre prognóstico.2
  • Anticorpo anti-mitocôndria pode ser encontrado em 8 a 12 % dos pacientes com HAI, mas se houver colestase associada deve-se buscar sinais de sobreposição com CBP.2

Apenas FAN de padrão homogêneo e pontilhado devem ser considerados para diagnóstico de HAI.1 Um típico padrão de FAN pode ser revelado pelas células Hep2 (múltiplos pontos nucleares ou nuclear-rim) indicando uma síndrome de HAI com características de CEP (colangite esclerosante primária) ou CBP associada.3 

Se o anti-SLA não estiver disponível, pode-se pedir anti-SSA/Ro e este pode ser considerado uma evidência indireta da reatividade do anti-SLA/LP, pois mais de 70% dos pacientes possuem reatividade concomitante.1

Lembre-se que os auto-anticorpos podem estar ausentes nos casos agudos de HAI e apenas emergir no curso da doença.3 Nos adultos, o cut-off  dos auto-anticorpos é 1:40.1,4 Nos adultos também (diferente das crianças) os títulos dos auto-anticorpos não se correlacionam bem com a atividade da doença e o curso clínico.2

Dentre os critérios histológicos destacam-se os seguintes:1,2,4

  • hepatite de interface (antigamente descrita como piece-meal necrosis);
  • plasmócitos ou infiltrado linfoplasmocítico (plasmócitos geralmente são abundantes, mas sua ausência não exclui o diagnóstico);
  • hepatócitos em roseta (grupo de hepatócitos formando uma imagem semelhante a roseta em uma área de hepatite de interface);
  • necrose de hepatócitos;
  • emperipolese (linfócitos “endocitosados” dentro dos hepatócitos, isto é, um linfócito dentro do citoplasma do hepatócito).

A presença de pelo menos 3 das características acima descritas caracteriza HAI.4 Idealmente o laudo da biópsia deve vir como (típico para HAI ou compatível com HAI).3

Escore Modificado e Revisado pelo Grupo Internacional de HAI (adaptado de Manns et al):4

Categoria a ser avaliadaEscore a ser pontuado
Sexo
feminino+2
masculino0
Fosfatase alcalina/AST (ou ALT)
<1,5+2
1,5-30
>3-2
Globulinas séricas ou IgG acima do normal
>2+3
1,5-2+2
1-1,5+1
<10
Auto-anticorpos (FAN, músculo liso ou LKM1)
>1:80+3
1:80+2
1:40+1
<1:400
Marcadores virais (hepatites A, B e C; considerar testagem para Epstein-Barr e CMV)
Positivo-4
Negativo+1
Uso de drogas/fármacos hepatotóxicos
Positivo-4
Negativo+1
Consumo médio de bebidas alcoólicas
Baixo (<25g/dia)+2
Elevado (>60g/dia)-2
Histologia Hepática
Hepatite de interface+3
Infiltrado linfoplasmocítico+1
Padrão de regeneração em roseta de hepatócitos+1
Nenhum acima-5
Alterações biliares sugestivas de colangite biliar primária ou colangite esclerosante primária-3
Outras características (como aquelas de doença hepática gordurosa não-alcoólica)-3
Outras doenças autoimunes no paciente ou em algum parente de 1º grau+2
Parâmetros opcionais em pacientes soronegativos a FAN, músculo liso e LKM1
Positividade a outros auto-anticorpos (pANCA, anti-LC1, anti-SLA/LP e anti-ASGPR)+2
HLA DR3 ou DR4+1
Resposta a terapia
Completa+1
Recaída+3

Soma dos critérios acima antes de iniciar tratamento:

  • >15 pontos: diagnóstico definitivo de HAI.
  • 10 a 15 pontos: diagnóstico provável de HAI.

Soma dos critérios acima após de iniciar tratamento:

  • >17 pontos: diagnóstico definitivo de HAI.
  • 12 a 17 pontos: diagnóstico provável de HAI.

Classificação da Hepatite Auto-imune

Classicamente a HAI é dividida em 2 tipos de acordo com seu perfil de auto-anticorpos: tipo 1 e tipo 22

  • HAI tipo 1: 
    • ocorre mais em adultos (apenas 10% dos casos dos adultos é HAI tipo 2);
    • FAN e anti-músculo liso são reagentes; 
    • pode ter também positividade para pANCA atípico (pois reage com a membrana nuclear periférica e por isso pode também ser chamado de pANNA).4
  • HAI tipo 2: 
    • mais comum em crianças abaixo de 7 anos (nas crianças entre 10 e 11 anos é mais comum a HAI tipo 1);2,4
    • anti-LKM1 reagente;
    • anti-LKM3 pode estar reagente (este em apenas 10% dos casos);
    • anti-citosol hepático 1 (anti-LC1) pode também estar reagente.

A existência da HAI tipo 3 (caracterizada pela presença do anticorpo anti-antígeno hepático solúvel ou anti-SLA) é controversa e se comporta de forma muito semelhante a HAI tipo 1, sendo um pouco mais severa.2

Diagnóstico diferencial

  • Doença de Wilson3
  • Hepatite E3
  • Hepatite C: 10% podem ter anti-LKM1.4
  • NASH (esteatohepatite não alcoólica)3
  • DILI (doença hepática induzida por drogas): pode fazer FAN e anticorpo anti-músculo liso.3 Exemplos: nitrofurantoína e minociclina podem servir de gatilhos para HAI.4

Tratamento da Hepatite Auto-imune

Durante o tratamento da HAI deve-se objetivar atingir remissão clínica, bioquímica e histológica. Para isso é necessário que o tratamento dure pelo menos 36 meses (3 anos) e neste período o paciente deve ser monitorado e acompanhado.1

Remissão bioquímica é definida como normalização das transaminases e dos níveis de IgG.1,4 A persistência de elevados títulos de anticorpo anti-músculo liso e/ou anticorpo anti-actina geralmente se associam a atividade de doença.1

Remissão histológica é definida como histologia normal ou hepatite periportal mínima (atividade periportal 0 ou 1) ou Índice de Atividade de Hepatite <4 pontos na biópsia hepática.1 Após 24 meses (2 anos) de se ter atingido a estabilidade bioquímica, recomenda-se realizar nova biópsia hepática para avaliar se ocorreu remissão histológica.1

Em resumo, o que o tratamento quer é normalizar os níveis de ALT, IgG e resolver a hepatite de interface presente na biópsia hepática!2 Em média, apenas 25% dos pacientes atingem essa remissão plena.4

O tratamento deve ser iniciado com terapia dupla (associação de Azatioprina 50mg/dia + Prednisona ou Prednisolona 30mg/dia)1 ou com monoterapia com corticóide.1,4 Alguns centros europeus iniciam prednisona 0.5 a 1mg/Kg/dia, mesmo quando em terapia dupla com Azatioprina.4 Há também centros europeus que tendem a usar Azatioprina na dose de 1 a 2mg/Kg/dia como dose inicial, mas se deve evitar doses superiores a 2mg/Kg/dia.4 

Azatioprina demora de 6 a 8 semanas para atingir seu efeito terapêutico máximo.4 Nos pacientes com contraindicação a Azatioprina, pode-se iniciar monoterapia de Prednisona ou Prednisolona. Nestes casos pode-se iniciar com a dose de 60mg/dia.1 

Exemplo de possíveis tratamentos (adaptado de Manns et al):4

Semana de tratamentoMonoterapiaTerapia Combinada
Prednisona ou PrednisolonaPrednisona ou PrednisolonaAzatioprina (EUA)Azatioprina (Europa)
60mg/dia30mg/dia50mg/dia1 a 2mg/Kg/dia
40mg/dia20mg/dia50mg/dia1 a 2mg/Kg/dia
3ª e 4ª 30mg/dia15mg/dia50mg/dia1 a 2mg/Kg/dia
Manutenção<20mg/dia10mg/dia50mg/dia1 a 2mg/Kg/dia

Apesar de um único RCT (trabalho clínico randomizado) sugerir benefício de Budesonida na HAI, esta não é recomendada como 1º linha de tratamento.1 No entanto, vários países europeus a autorizaram nos pacientes não-cirróticos com doença leve e para se reduzir os efeitos da corticoterapia.2,4 A Budesonida pode ser usada em associação com Azatioprina.4 Não se deve usa-la nos pacientes não respondedores a corticoterapia e não deve ser dada a cirróticos.4

Outra possibilidade de tratamento é começar o manejo com o corticóide e deixar o início da Azatioprina para algumas semanas posteriores (seu início idealmente deve ocorrer quando os níveis de bilirrubina total estiverem <5.8mg/dL).2

Na terapia dupla, pode-se com o passar dos meses reduzir progressivamente a dose da Prednisona (a cada 2 semanas, por exemplo) e aumentar a dose de Azatioprina para se atingir o efeito imunossupressor.1 Pode-se manter Prednisona nas doses de 7.5 a 15mg/dia e de Azatioprina em 75 a 150mg/dia. 

Nos pacientes com respostas subótimas à terapia dupla com Azatioprina, pode-se dosar os metabólitos da Azatioprina no sangue (como 6-tioguanina e 6-mercaptopurina). Isso evita aumentos inapropriados da dose da medicação, reduz a possibilidade de toxicidade à droga e melhor monitora a adesão ao tratamento. 

Se houver a presença de baixos níveis de 6-tioguanina e/ou elevados níveis de 6-mercaptopurina, pode-se associar Alopurinol ao esquema de tratamento com o objetivo de reforçar a produção dos metabólitos ativos da Azatioprina e reduzir os metabólitos tóxicos. O Alopurinol forçará a Azatioprina a seguir sua metabolização pela via que forma mais metabólitos ativos e menos tóxicos.1 Outra opção seria fazer a genotipagem TMPT (tiopurina metiltransferase) para predizer a toxicidade à Azatioprina, mas isso não é feito, nem recomendado de rotina.4

Menos de 20% dos pacientes consegue ficar sem tratamento (isto é, para a maioria dos pacientes o tratamento é contínuo).2 Caso o tratamento seja suspenso, a monitorização das aminotransferases deve ser feito regularmente.1

Cerca de 10 a 15% dos pacientes precisarão de medicações de 2ª linha, como os inibidores da calcineurina, Micofenolato de Mofetila e terapia biológica.2 Ciclosporina e Tacrolimus (ambos inibidores da calcineurina) podem ser usados em pacientes com resposta incompleta.1 O Tacrolimus pode ser usado na dose de 1 a 8mg/dia e seu nível deve ser mantido em 4 a 6ng/mL.2 O Micofenolato de Mofetila pode ser usado na dose de 750 a 1000mg duas vezes ao dia. O uso de Infliximabe (anticorpo anti-TNF) e Rituximab (anticorpo anti-CD20) é incerta, mas descrita em alguns relatos de caso.2 Para o uso de Rituximab deve-se avaliar a presença de hepatite B oculta.4

HAI e Gestação

  • A presença de HAI não é por si só uma contraindicação a gestação ou ao aleitamento materno. 
  • A Azatioprina possui baixo potencial teratogênico.1
  • Pode-se usar durante a gestação Prednisona e Azatioprina, mas deve-se discutir com a paciente (pois os riscos não são zero).1
  • Deve-se evitar amamentar por até 4 horas após a tomada das medicações.1
  • Não se pode usar Micofenolato de Mofetila na gestação e no aleitamento materno, devido ao elevado risco de malformação. Uma opção seria usar Prednisona.1

Bibliografia

  1. Couto, CA; Terrabuio DRB; Rachid EL; Porta G; Levy C; Silva AEB; Bittencourt PL and Members of the Pannel of the 2nd Consensus of the Brazilian Society of Hepatology on the Diagnosis and Management of Autoimmune Diseases of the Liver. Update of the Brazilian Society of Hepatology Recommendations for Diagnosis and Management of Autoimmune Diseases of the Liver. Arq Gastroenterol, 2019;56(2);abr/jun.
  2. Gulamhusein A; McKiernan P. Autoimmune Hepatitis. capítulo 6; pg 105-122 IN James Neuberger; Gideon M. Hirschfield. Autoimmune Liver Disease – Management and Clinical Practice. Editora Wiley Blackwell, Ontario, Canada, 2020.
  3. Sebode M; Hartl J; Vergani D; Lohse AW. Autoimmune hepatitis: From current knowledge and clinical practice to future research agenda. Liver International. 2018;38:15–22.
  4. Manns MP; Lohse AW; Vergani D. Autoimmune hepatitis – Update 2015. Journal of Hepatology 2015;62:S100–S111.

DR. JEAN TAFAREL

Hepatologia & Gastroenterologia
CRMPR: 19.809